quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Pobre velha musica


Pobre velha música!
 Não sei por que agrado
 Enche-se de lágrimas
 Meu olhar parado.
 Recordo outro ouvir-te
Não sei se te ouvi
 Nessa minha infância
 Que me lembra em ti.
 Com que ânsia tão raiva
 Quero aquele outrora!
 E eu era feliz? Não sei:
 Fui-o outrora agora.

 Fernando Pessoa,

domingo, 27 de setembro de 2015

Canção de Outono


Perdoa-me, folha seca, não posso cuidar de ti.
 Vim para amar neste mundo, e até do amor me perdi
 De que serviu tecer flores pelas areias do chão
 se havia gente dormindo sobre o próprio coração?
 E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza é que sou triste e infeliz.
 Perdoa-me, folha seca!
 Meus olhos sem força estão velando
 e rogando aqueles que não se levantarão...
 Tu és folha de outono voante pelo jardim.
 Deixo-te a minha saudade - a melhor parte de mim.
 E vou por este caminho, certa de que tudo é vão.
 Que tudo é menos que o vento, menos que as folhas do chão...

Cecília Meireles
Foto -Irina Khutornaya

sábado, 19 de setembro de 2015

Inconstância...


Procurei o amor, que me mentiu.
 Pedi à Vida mais do que ela dava;
 Eterna sonhadora edificava
 Meu castelo de luz que me caiu!
 Tanto clarão nas trevas refulgiu,
 E tanto beijo a boca me queimava!
 E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!
 Passei a vida a amar e a esquecer...
 Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando...
 E este amor que assim me vai fugindo
 É igual a outro amor que vai surgindo,
 Que há-de partir também... nem eu sei quando...

Florbela Espanca

terça-feira, 15 de setembro de 2015

ROSA...


Tu és como o rosto das rosas:
diferente em cada pétala.
 Onde estava o teu perfume?
 Ninguém soube.
 Teu lábio sorriu para todos os ventos
 e o mundo inteiro ficou feliz.
 Eu, só eu, encontrei a gota de orvalho
 que te alimentava, como um segredo que cai do sonho.
 Depois, abri as mãos, - e perdeu-se.
 Agora, creio que vou morrer.

 Cecília Meireles In: Poesia Completa Viagem (1939)

sábado, 12 de setembro de 2015

SONETO ANTIGO


 Responder a perguntas não respondo
 Perguntas impossíveis não pergunto.
 Só do que sei de mim aos outros conto:
de mim, atravessada pelo mundo.
 Toda a minha experiência, o meu estudo
sou eu mesma que, em solidão paciente
 recolho do que em mim observo e escuto
 muda lição, que ninguém mais entende.
 O que sou vale mais do que o meu canto.
 Apenas em linguagem vou dizendo
 caminhos invisíveis por onde ando.
 Tudo é secreto e de remoto exemplo.
 Todos ouvimos, longe, o apelo do Anjo.
 E todos somos pura flor de vento.

 Cecília Meireles

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

As tuas mãos...


As tuas mãos grossas veias como cordas azuis
 sobre um fundo de manchas já cor de terra
 como são belas as tuas mãos
 pelo quanto lidaram, acariciavam ou fremiam da nobre cólera dos justos...
 Porque há nas tuas mãos, meu velho pai
 essa beleza que se chama simplesmente vida.
 E, ao entardecer, quando elas repousam
 nos braços da cadeira predilecta, uma luz parece vir de dentro delas...
 Virá dessa chama que pouco a pouco
 longamente, vieste alimentando
 na terrível solidão do mundo. como quem junta gravetos
 e tenta acendê-los contra o vento?
 Ah! Como os fizestes, arder, fulgir, como o milagre de suas mãos!
 E é ainda, a vida que transfigura
 as tuas mãos nodosas... essa chama de vida
  que transcende a própria vida ...
e que os Anjos, um dia, chamarão de alma.

 Mario Quintana

sábado, 5 de setembro de 2015

Os poemas....


Os poemas são pássaros que chegam
 não se sabe de onde e pousam no livro que lês.
 Quando fechas o livro, eles alçam voo
 como de um alçapão.
 Eles não têm pouso nem porto;
 alimentam-se um instante em cada par de mãos e partem.
 E olhas, então, essas tuas mãos vazias
 no maravilhado espanto de saberes
 que o alimento deles já estava em ti...

Mario Quintana
foto- Mandy Notley

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Havia nesse olhar...


Havia nesse olhar
 um tanto mais de tristeza que de ironia;
 era na verdade, um olhar profundo
 e desesperadamente triste
 com o qual traduzia um desespero calado
 de certo modo irremediável e definitivo
 que já se transformara em hábito e forma.

 Herman Hesse